top of page
Foto do escritorMariana Torres

O resgate

Eu sei. Você quer o meu bem. É seu único objetivo nesse momento. Você está preocupada. Você não me reconhece mais. Você se assusta toda vez que me encontra e é incapaz de ignorar as minhas olheiras acentuadas e as minhas rugas precoces em franca expansão. Você pensa que eu tenho apenas 33 anos. Como eu fui ficar desse jeito, tão acabada? Eu era uma menina tão linda. Quiçá a mais linda que você já viu.

Você precisa fazer alguma coisa. Não dá para ficar parada enquanto eu definho dia após dia. Eu me perdi, você tem certeza. Eu não tenho mais o rumo da minha vida. É porque sempre fui muito teimosa, você pensa. Sempre quis mostrar algo para o mundo. Algo de positivo, de forte. Nunca minhas fraquezas, minhas derrotas. Mas não estou mais conseguindo. Logo se percebe. Na minha aparência, na minha energia, na minha voz. Tudo. Eu preciso de ajuda. Mais ajuda para além da terapia que eu faço há dois anos. Porque ela não parece ser suficiente. Porque você não me conhece mais. Então você toma uma atitude. Fala com as outras. Expõe suas preocupações. Fica satisfeita, porque há unanimidade. Eu não sou mais a mesma. Vocês precisam me resgatar. Precisam de um plano.

Vocês começam aos poucos. Cada uma fala de vez em quando. O melhor é começar dando indiretas muito diretas sobre o exato curso de ação que devo tomar. Vocês já sabem. Esse é o problema e é só isso que vai me fazer melhorar. Nada mais. Quando a minha teimosia fala mais alto e eu pareço fingir que não ouvi ou tento falar algo diferente do que vocês planejavam, surgem os discursos. Eu não preciso ser tão forte o tempo todo. Não preciso provar nada para ninguém. Posso só aceitar o que não está legal e fazer aquilo que vocês acham melhor. E voltar a ser eu mesma.

Engraçado, achava que era eu mesma. Ainda não toda, mas muito mais do que tinha sido. Achava que não estava provando nada para ninguém. Talvez pela primeira vez. Estava feliz. Achava que dava para ser feliz e cansada ao mesmo tempo. Porque achava que uma coisa não tinha a ver com a outra. Achava que feliz não era uma condição onipresente. E mesmo quando a felicidade estava lá ela coexistia até que bem com o meu cansaço. E que era bom também. Era cansaço de mudança de descobrir coisas novas sobre o mundo e sobre mim. De sair dos moldes em que estava aprisionada fazia um tempo. Dava trabalho, não era fácil. Mas era legal. Não sabia que as pessoas não gostavam. Não sabia que eu também não gostava. Não sabia que eu precisava ser resgatada. Mas você achava. Não só você. Todas vocês.

Às vezes a gente não consegue enxergar a própria realidade. A gente precisa que os outros mostrem para a gente o que a gente está sentindo e como a gente tem que fazer para se sentir bem. Porque os outros sabem o que faz a gente se sentir bem. E a gente não. Eu sei. Eu já tentei fazer isso com você. Não só com você. Com as outras também. Estava muito cedo para você morar junto. Você mal o conhecia. Não importa que você estivesse feliz. Era tudo uma ilusão. Agora passaram anos e você está casada, mas quem garante que vai dar tudo certo? Ninguém garante nada. E a outra, que voltou com o ex que não vale nada. Não, não importa que ela quisesse. Não importa que não se importasse com as traições. Estava se enganando. Ia dar muito errado. Ainda não tinha dado, mas quem garante que não ia dar? Não, não. Vocês também são incapazes de enxergar a própria realidade. Talvez a gente nunca devesse tomar nossas decisões sem antes pensar no que os nossos queridos vão achar sobre isso. Os outros sabem o que é certo para a gente. Talvez. Mas por ora estou cansada. Cansada e ingenuamente feliz. Vou descansar um pouco e parar de pensar no que preciso fazer para melhorar a minha realidade para vocês. Vou ser só um pouquinho feliz enquanto ainda posso. Depois a gente volta a conversar.

 

 


6 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page