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Foto do escritorMariana Torres

A velhice

88 anos. Parece que todos os clichês de velhice surgem ao mesmo tempo e se mostram absolutamente verdadeiros. A começar pelos ossos que pesam. Pesam imenso. Pesam a cada passo, a cada mexida na cama, a cada copo de água levado à boca, a cada abraço escasso. Toneladas. Sentia como se um fantasma estivesse fazendo uma pressão invisível para que dificultasse o movimento de seus membros. A coluna arqueava aos poucos. Mas de tanto pouco já tinha virado muito. Talvez só de birra ao lembrar do pai com seu olhar de general ordenando que ficasse ereta à mesa. Mas agora já não era mais tão ruim ficar ereta. Seria um pouco menos doloroso. A coluna não era a única que desaprendeu a se endireitar. Os dedos das mãos se tornaram rebeldes com o tempo e não mais obedeciam aos seus comandos. Insistiam em permanecer numa posição fixa de garra como se quisessem se fechar cada vez mais para o mundo exterior.

            Diziam que tinha muito sorte de chegar a essa idade com saúde. Talvez não usasse exatamente essa palavra. Sua mãe morreu aos 63 sem que arqueasse a coluna, pesassem os ossos e dobrassem os dedos. Morava com ela, seus filhos e seu marido. Vivia cercada de gente querida, do amor, das suas panelas, dos seus pãezinhos de minuto e pasteizinhos, das pequenas coisas boas da vida. E assim morreu, no conforto de sua cama e ninguém sabe ao certo do que. Naquela época não se sabia e talvez fosse melhor assim. Não se interferia no destino. E ela, com sua sorte imensa, chegou lá. Aos 88 anos. Por quê? Ninguém havia alertado que isso seria possível. Não era como o mundo funcionava. Aqueles que chegavam aos 70 eram o ponto fora da curva. Iam morar com seus familiares, onde eventualmente padeciam sob seus cuidados. Mas lá estava ela com seus 88 anos vivendo com sua “acompanhante”, segundo diziam os filhos, em seu enorme e assustador apartamento. E a questão da saúde é também relativa. Não bastassem os ossos pesando, as costas arqueando e os dedos encurvando, a cabeça pedia arrego. Não queria mais trabalhar. Tinha dificuldade em lembrar o que tinha feito minutos antes. E o pior era quando acontecia na frente dos outros. Ainda não era surda e nem cega, mas ninguém parecia saber. Ela ensinou os filhos a não falar dos outros na frente deles, era falta de educação. Mas eles pareciam ter se esquecido. Quando a campainha tocava anunciando nova visita dos filhos, corria para a porta o mais rápido que seus ossos pesados permitiam para não chegar atrasada e ter que se deparar com a maldita “acompanhante” os recebendo e dizendo “hoje ela está bem” ou “hoje ela está mal”. Mesmo se estivesse bem, ficava mal. E se policiava também durante as conversas. Para não esquecer, não ser repetitiva. Mas esquecia que a cabeça arriava e esquecia também. E aí se dava conta de que já tinha perguntado a sua última pergunta. E tinha que olhar os filhos se olhando com olhos misturados de ternura, preocupação e dó. Burra. Como pôde ser tão idiota? Era melhor ter ficado quieta. E ficava.

            De vez em quando iam os netos. Aqueles pequenos projetos de gente que haviam se tornado homens peludos e mulheres charmosas. Seus amores. Houve uma época em que corriam livres pela casa de uma maneira que só as crianças eram capazes. Era a melhor parte de sua semana. Na verdade, quase toda a sua semana, com exceção dos fins de semana em que os pequenos ficavam com os pais. A casa era alegre. Viva. Acompanhou todas as etapas do desenvolvimento de seus meninos. Deu colo a adolescentes emburrados, confusos, revoltados com os pais. Recebeu em sua casa namoradinhos e namoradinhas diversos. Comemorou o sucesso no vestibular. Mas foi incapaz de perceber que aos poucos as coisas mudavam. A vida se impunha dura e brusca também para seus pequenos amores e eles tinham que aprender a jogar o jogo. As visitas foram rareando. Seu marido foi-se embora, como era esperado que ela também fosse. Mas não foi. De uma hora para a outra, as visitas de amor, chamego e conselhos dos netos pareciam ter se tornado visitas de compaixão. O tom maternal com que se dirigia a eles agora era voltado a ela. Como se ela fosse o elemento frágil da relação, como se não entendesse, como se precisasse de ajuda e migalhas de afeto. E o pior. Ela agora batalhava por essas migalhas que rareavam duramente com tempo. Até que os filhos tiveram a ideia da “acompanhante”. Aquela que supriria todo o abismo que fora aberto dentro dela com a independência dos filhos e netos. Uma estranha encarregada de cuidar de sua saúde e de sua alma. De suprir toda a demanda de amor que se criou dentro dela com a ausência dos seus crescidos familiares. Com a velhice.

            Não sabe quanto tempo passou na mesmice de seu cotidiano. Acordar, comer, passear com aquela maldita “acompanhante”, porque faz bem para a saúde, comer, descansar, ler, passear, porque faz bem para a saúde de novo, comer, assistir televisão e dormir. Mas de maneira meio inesperada recebeu a notícia. Sua neta estava grávida. Seria bisavó. Como é que pode isso? Os dias de acordar, comer, passear, comer, descansar, ler, passear, comer, assistir televisão e dormir acabaram passando mais rápido. Ela sonhava com uma criança que ainda nem conhecia, uma parte sua, uma esperança.

A neta trouxe em seus braços uma criatura tão pequena, tão frágil, tão carente de amor. Talvez um pouco como ela. Amou o menino, como amou a todos os seus meninos. Viveria para ele. Só não sabia que teria de dividi-lo com 4 avós e as 3 bisavós que ainda restavam. Malditos. Tinha a impressão de que a acompanhante a enganava quando dizia que ele viria na próxima semana. Também como ela haveria de saber naquela altura a diferença entre segunda ou sábado, uma semana ou um mês? Maldita. Mas as vezes ele vinha. E ela era ela de novo. E ela cuidava, ninava, mimava. Até acabar. E ele ir embora. E ia esperar mais uma semana ou um mês ou um ano. Acordando, comendo, passeando, comendo, descansando, lendo, passeando, comendo, assistindo televisão e dormindo. Mas não veria ele crescendo, tornando-se homem, aprendendo a ler, a escrever, a andar de bicicleta, a namorar, a odiar os pais, a pedir seu colo, seu amor. O coração não aguentava de saudades de um tempo inventado. O coração também pesa. Não dava mais para esperar. Estava na hora do coração também parar.

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